sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

O texto escolhe a língua

A folha branca repousa sobre a mesa. Na mão do escritor, a caneta. Na cabeça, a ideia.
Para a maioria, esse é o momento atroz, como alguém que espera na largada o sinal para a corrida. Dalí surge a primeira palavra como a primeira passada que se dá, o primeiro fôlego que se toma, a primeira gota de suor que escorre.  Não é o corredor que faz a corrida. É o caminho que se abre diante dele, como uma rota que o alimenta, como uma força que o impulsiona até a linha de chegada.  Não é o corredor que vence; é antes o caminho que o conduz à vitória.
O texto é soberano no papel. Não é a caneta que o escreve. Ela apenas faz descobrir a beleza oculta naquilo é branco. Contrariando todas as leis da Natureza, ela o fecunda através da tinta, como dois corpos que se entrelaçam em busca da criação.
Assim como o beijo escolhe a boca, o ninho escolhe o pássaro, a comida escolhe a fome, a treva escolhe o lume.  O anel escolhe o dedo, o susto escolhe o medo, o monte escolhe o cume, é o texto que escolhe a língua em que quer ser escrito, não o autor. Dessa maneira, o texto célebre, o romance colossal só o é porque foi intuído por algum gênio na língua mais perfeita para si.  Permeando os costumes, o tempo, a linguagem e a construção dos clichés que conhecemos hoje, edificou uma obra que permanecerá viva ainda por muito. Fica fácil entender, portanto, porque D. Quijote veio de Cervantes e Les Misérables de Hugo. Cada um deles é muito mais do que aventura e fidalguia, idealismo e luta. A língua fala o sentimento de uma nação inteira, o sentimento de seu tempo.
E o escritor, o que é? É justo jactar-se quando se percebe que não passamos de instrumentos, de descobridores de tesouros, de desbravadores intrépidos em busca de novas paisagens? O que somos nós senão um meio imperfeito, vassalos de nossas limitações, muitas vezes incapazes de sentir o sopro que inspira, de enxergar a luz que guia, de percorrer o caminho que liberta?
Ousaria dizer que não passamos de usuários de tudo o que já existe. Não criamos nada. Tudo está pronto, tudo nos é oferecido na sua inteireza e singular simplicidade. O belo é simples. Mesmo para palavra, o verbo singelo e solitário, nosso trabalho consiste na busca da nuance, como quem cria uma nova molécula, que metamorfoseia o elemento puro na frase que compõe o texto, transformando-se em sua própria substância.
No entanto, o que é a palavra senão a materialização do sentimento, a exteriorização da dor e da alegria, da paixão e do desencanto, da ignorância e da verdade que é soprada pela nossa alma como um clamor para entender a vida? O que é Amor senão a abnegação pura, o esquecimento de si mesmo e cuja força se manifesta no mundo através do perdão que liberta, da criação que transforma, da dedicação que ensina e do carinho que envolve? Quando pensamos Luz, não estaríamos nos referindo apenas ao facho que ilumina, mas aos raios que dispersam a treva, ao ponto de referência que guia o nosso olhar e fortalece a nossa virtude?  É o calor que nos abrasa e nos envolve, nos acaricia no âmago e nos mostra que nossa sombra se dissipa à medida que nos aproximamos dela.
A Luz é para a vida o que é o texto para o papel: A força que conduz.

Frederico Ferreira